sexta-feira, 9 de março de 2012

mágoas

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

nenhuma nudez será castigada,

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

as ondas

agora, ela atravessa o campo, o andar oscilante, indiferente, para nos enganar. depois, chega à encosta; pensa que ninguém a vê; põe-se a correr com os punhos fechados à sua frente. as unhas enfiadas na bola do lenço amassado. corre para o bosque de faias, fora da luz. quando chega, abre os braços e entra na sombra como um nadador. mas está cega depois de tanta luz, e cambaleia até as raízes sob as árvores, onde a luz parece entrar e sair, entrar e sair. os ramos erguem-se e abaixam-se. há movimento e agitação. há sombra. a luz é indecisa. tudo está pleno de angústia.

sábado, 15 de janeiro de 2011

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Calígula, de Camus

- mas é certo que a amava. na verdade, é duro ver morrer o que ontem se apertava ao peito.
- e tu?
- eu? sou apenas a velha amante.
- é preciso salvá-lo.
- tens-lhe afeto, então?

sábado, 24 de abril de 2010

o balcão

o coração nos leva à perdição. cremos ser donos de nossa bondade: nós somos escravos de uma serena languidez. é ainda de outra coisa que se trata, não de inteligência. (hesita) seria de crueldade. e além dessa crueldade - e através dela - um caminhar hábil, vigoroso em direção à Ausência. em direção à Morte.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

o ovo apunhalado

aquele menino trazia na testa a marca inconfundível: pertencia àquela espécie de gente que mergulha nas coisas às vezes sem saber por que, não sei se na esperança de decifrá-las ou se apenas pelo prazer de mergulhar. essas são as escolhidas — as que vão ao fundo, ainda que fiquem por lá. como aquele menino. ele não voltou.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

pedras de calcutá

os dois na chuva recitando Clarice Lispector, para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, meu Deus, tu decorou até hoje,

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

inventário do ir-remediável

experimentou sentir ódio, lembrar pessoa, coisas e fatos desagradáveis, apalpar novamente a tessitura sombria do que vivera, a massa espessa de que era feita a mágoa, e todos os desencontros que tinha encontrado, e todos os desamores desilusões desacatos desnaturezas não, não, já nem ódio queria, que encontrasse ao menos a tênue melancolia, aquele como-estar-debruçado-na-sacada-num-fim-de-tarde, a tristeza, a solidão, a paixão: qualquer coisa intensa como um grito.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Cenário

armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade

e recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas

retrocedem os tempos tão velozes
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses

e percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores

aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram ali tristes cavalos.
e enamorados olhos refulgentes

- parado o coração por escutá-los
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos

domingo, 30 de agosto de 2009

A fúria do corpo II

NÃO HÁ REMÉDIO QUANDO OS SENTIDOS SUPERAM A REALIDADE PORQUE A REALIDADE ENTÃO ESTÁ CONDENADA.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Walden ou A vida nos bosques

fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que tinha a me ensinar, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido. queria viver em profundidade e sugar toda a medula da vida, viver tão vigorosa e espartanamente a ponto de pôr em debandada tudo que não fosse vida, deixando o espaço limpo e raso; encurralá-la num beco sem saída, reduzindo-a a seus elementos mais primários, e, se esta se revelasse mesquinha, adentrar-me então em sua total e genuína mesquinhez e proclamá-la ao mundo; e se fosse sublime, sabê-lo por experiência, e ser capaz de explicar tudo isso na próxima digressão.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A fúria do corpo

beijando a sombra por onde o buraco se esburaca feito a falta.

domingo, 5 de julho de 2009

borracho me voy
con tu recuerdo,
con una sentimental
penita de amor

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Pequenas epifanias

na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: "il y a toujours quelque chose d'absent qui me toumente" (existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) - frase de uma carta escrita por camille claudel a rodin, em 1886. daquela casa, dizia a placa, camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. perdida de amor, de talento e de loucura. [...]

quando um dia você vier a Paris, procure. e se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. guarde sem dor, embora doa, e em segredo.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Morte a crédito

aqui estamos de novo sozinhos. tudo isto é tão lento, tão pesado, tão triste.... logo estarei velho. e então, chegará o fim. veio tanta gente ao meu quarto. deixaram tanta coisa e não me disseram nada. foram embora. envelheceram, coitados, vagarosamente, cada um no seu canto.

ontem, às oito horas, morreu a zeladora, a senhora bérenge.

terça-feira, 2 de junho de 2009

la vie en close

essa a vida que eu quero,
querida

encostar na minha
a tua ferida

sábado, 30 de maio de 2009

La barca de oro

Yo ya me voy al puerto donde se halla
la Barca de Oro que debe conducirme.
Yo ya me voy; sólo vengo a despedirme,
adios, mujer, adios, para siempre adios.
No volverán tus ojos a mirarme,
ni tus oídos escucharán mi canto.
Voy a aumentar los mares con mi llanto,
adios, mujer, adios, para siempre adios.


trilha sonora de "Santa Sangre", de Jodorowsky.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Diário de um ladrão

entro em mim mesmo. preparo dentro de mim um lugar delicioso e feroz de onde ficarei olhando, sem receio, o furor dos homens. espero o barulho do canhão, as trombetas da morte, para dispor uma bolha de silêncio sempre recriada. eu ainda os afastarei pelas camadas múltiplas, e cada vez mais espessas, das minhas aventuras de outrora, mastigadas, remastigadas, babadas em volta de mim, desfiadas e enroladas como a seda do casulo. trabalharei para conceber a minha solidão e a minha imortalidade, para vivê-las, se um desejo idiota de sacrifício não me fizer sair delas.

domingo, 10 de maio de 2009

O jogo da amarelinha

toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.

terça-feira, 28 de abril de 2009

A náusea IV

já não os ouço: me irritam. vão dormir juntos. sabem disso. cada um dos dois sabe que o outro sabe. mas, como são jovens, castos e decentes, como cada um deles quer manter sua auto-estima e a do outro, como o amor é uma grande coisa poética que é preciso não chocar, eles vão várias vezes por semana aos bailes e aos restaurantes, para oferecer o espetáculo de suas dancinhas rituais e mecânicas... afinal é preciso matar o tempo. (...) quando tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra coisa para encobrir o enorme absurdo de suas existências. ainda assim... será absolutamente necessário mentir a si mesmos?

A náusea III

acariciar na plenitude dos lençóis brancos a carne branca plena que se inclina suave, tocar a umidade florida das axilas, os elixires e os licores e as florescências da carne, entrar na existência de outrem, nas mucosas vermelhas com o forte, doce, doce odor de existência, me sentir existir entre os suaves lábios molhados, os lábios vermelhos de sangue pálido, os lábios palpitantes que bocejam todos molhados de existência, todos molhados de pus claro, entre os lábios molhados açucarados que lacrimejam como olhos

domingo, 19 de abril de 2009

A náusea II

quando tinha vinte anos, me embriagava e depois explicava que era um sujeito no gênero de descartes. sentia perfeitamente que me inflava de heroísmo, mas não me continha: isso me agradava. depois, no dia seguinte, me sentia tão enojado como se tivesse acordado numa cama cheia de vômito. quando estou bêbado, não vomito - antes o fizesse. ontem não tinha sequer a desculpa da embriaguez. entusiasmei-me como um imbecil. preciso me limpar com pensamentos abstratos, transparentes como a água.

A náusea

revisitar o que trouxe dor:

sofre com avareza. também deve ser avara em relação aos seus prazeres. pergunto-me se algumas vezes não deseja se libertar dessa dor monótona, desses resmungos que recomeçam tão logo pára de cantar, se não deseja sofrer muito de uma vez por todas, se afogar no desespero. mas, de qualquer maneira, não poderia fazê-lo: está atada.

é isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que vem lentamente à existência, que se faz esperar e, quando chega, nos sentimos enfastiados porque percebemos que já estava ali há muito tempo.

cada instante só surge para trazer os que se lhe seguem. sei que é único; insubstituível - e no entanto não faria um gesto para impedi-lo de se aniquilar.

O olho e o espírito

um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A obscena senhora D II

miudez, quentura, gosto. mover-se pouco. não dizer. as mãos na parede. no corpo. pensar o corpo, tentar nitidez.

A obscena senhora D

não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de ouro no lá fora, procuro a caminhada sem fim, te procuro, vômito, menino-porco, ando galopando desde sempre búfalo zebu girafa, derepente despenco sobre as quatro patas e me afundo nos capins resfolegando, sou um grande animal, úmido, lúcido, te procuro ainda, agora não articulo, também não sou mudo, uns urros, uns finos fortes escapam da garganta, agora eu búfalo mergulho, uns escuros

se sou zebu também caminho aos bandos, sou triste de olhar, quero dizer que não terás muita luz no olho se me olhares, a cabeça procura sempre o chão, o beiço quer o verde sempre, se levanto a cabeça olho como quem não vê, procuro como quem não procura, corro se os outros correm ouvindo a voz do homem he boi he boi, que coisa crua empedrada a voz do homem, que cheiro o cheiro do homem, sendo girafa olho alto, estufo de lagores, sobrepasso, sendo girafa no vão da escada encolho, franzida me agacho, sendo girafa te procuro mais perto, lambedura acontecível isso de hillé ser búfalo zebu girafa, acontecível isso de alguém ser muito ao mesmo tempo nada, de olhar o mundo como quem descobre o novo, o nojo, o coagulado, e olhando assim ainda ter o olho adiáfano, impermissível, opaco

Filosofia na alcova

terça-feira, 14 de abril de 2009

A idade da razão II

era amor. agora era amor. mathieu pensou: "que foi que fiz?". cinco minutos antes aquele amor não existia; havia entre ambos um sentimento raro e precioso, sem nome, que não se exprimia por meio de gestos. e eis que ele fizera um gesto, o único que não devia fazer, aliás não o fizera propositadamente, aquilo viera sozinho. um gesto e aquele amor aparecera diante de mathieu como um objeto importante e já vulgar.

ela estava a seu lado, rígida e silenciosa e entre eles havia o gesto, "tenho horror a que me toquem", o gesto desajeitado e terno, que já comportava a impalpável obstinação das coisas passadas.

"ela está por conta, me despreza", não era o que eu queria dela, pensou com desespero. mas já não conseguia lembrar o que queria antes. era o amor, simplesmente, com seus desejos simples e suas condutas vulgares.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A idade da razão

Contemplara então a carne polida e sedosa, um tecido quase, e seu corpo era apenas uma superfície feita para refletir os jogos estéreis de luz e tremer sob as carícias como a água ondulava ao vento. Agora não era mais a mesma carne.

Gota d'água

Quando o meu bem-querer me vir
Estou certa que há de vir atrás
Há de me seguir por todos
Todos, todos, todos o umbrais

E quando o seu bem-querer mentir
Que não vai haver adeus jamais
Há de responder com juras
Juras, juras, juras imorais

E quando o meu bem-querer sentir
Que o amor é coisa tão fugaz
Há de me abraçar com a garra
A garra, a garra, a garra dos mortais

E quando o seu bem-querer pedir
Pra você ficar um pouco mais
Há que me afagar com a calma
A calma, a calma, a calma dos casais

E quando o meu bem-querer ouvir
O meu coração bater demais
Há de me rasgar com a fúria
A fúria, a fúria, a fúria dos animais

E quando o seu bem-querer dormir
Tome conta que ele sonhe em paz
Como alguém que lhe apagasse a luz
Vedasse a porta e abrisse o gás

domingo, 12 de abril de 2009

Demian

encontrei-me com ele na rua, altas horas da noite, no momento em que dobrava uma esquina, aos tropeções, completamente embriagado. passou ao meu lado e não me viu, os olhos ardentes e solitários perdidos na distância, como obedecendo a uma chamada que lhe chegasse do desconhecido. segui-o até o fim da rua. avançava como se fosse puxado por um fio invisível, num passo fanático, flutuando como um fantasma. entristecido, voltei para casa e para os meus sonhos não concretizados. “é assim que ele renova em si o mundo”, pensei; mas nesse mesmo instante percebi a baixeza e o preconceito moral daquela reprovação. que sabia eu de seus sonhos? em sua embriaguez talvez seguisse um caminho mais certo do que eu no meu temeroso escrúpulo.