terça-feira, 28 de abril de 2009

A náusea IV

já não os ouço: me irritam. vão dormir juntos. sabem disso. cada um dos dois sabe que o outro sabe. mas, como são jovens, castos e decentes, como cada um deles quer manter sua auto-estima e a do outro, como o amor é uma grande coisa poética que é preciso não chocar, eles vão várias vezes por semana aos bailes e aos restaurantes, para oferecer o espetáculo de suas dancinhas rituais e mecânicas... afinal é preciso matar o tempo. (...) quando tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra coisa para encobrir o enorme absurdo de suas existências. ainda assim... será absolutamente necessário mentir a si mesmos?

A náusea III

acariciar na plenitude dos lençóis brancos a carne branca plena que se inclina suave, tocar a umidade florida das axilas, os elixires e os licores e as florescências da carne, entrar na existência de outrem, nas mucosas vermelhas com o forte, doce, doce odor de existência, me sentir existir entre os suaves lábios molhados, os lábios vermelhos de sangue pálido, os lábios palpitantes que bocejam todos molhados de existência, todos molhados de pus claro, entre os lábios molhados açucarados que lacrimejam como olhos

domingo, 19 de abril de 2009

A náusea II

quando tinha vinte anos, me embriagava e depois explicava que era um sujeito no gênero de descartes. sentia perfeitamente que me inflava de heroísmo, mas não me continha: isso me agradava. depois, no dia seguinte, me sentia tão enojado como se tivesse acordado numa cama cheia de vômito. quando estou bêbado, não vomito - antes o fizesse. ontem não tinha sequer a desculpa da embriaguez. entusiasmei-me como um imbecil. preciso me limpar com pensamentos abstratos, transparentes como a água.

A náusea

revisitar o que trouxe dor:

sofre com avareza. também deve ser avara em relação aos seus prazeres. pergunto-me se algumas vezes não deseja se libertar dessa dor monótona, desses resmungos que recomeçam tão logo pára de cantar, se não deseja sofrer muito de uma vez por todas, se afogar no desespero. mas, de qualquer maneira, não poderia fazê-lo: está atada.

é isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que vem lentamente à existência, que se faz esperar e, quando chega, nos sentimos enfastiados porque percebemos que já estava ali há muito tempo.

cada instante só surge para trazer os que se lhe seguem. sei que é único; insubstituível - e no entanto não faria um gesto para impedi-lo de se aniquilar.

O olho e o espírito

um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A obscena senhora D II

miudez, quentura, gosto. mover-se pouco. não dizer. as mãos na parede. no corpo. pensar o corpo, tentar nitidez.

A obscena senhora D

não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de ouro no lá fora, procuro a caminhada sem fim, te procuro, vômito, menino-porco, ando galopando desde sempre búfalo zebu girafa, derepente despenco sobre as quatro patas e me afundo nos capins resfolegando, sou um grande animal, úmido, lúcido, te procuro ainda, agora não articulo, também não sou mudo, uns urros, uns finos fortes escapam da garganta, agora eu búfalo mergulho, uns escuros

se sou zebu também caminho aos bandos, sou triste de olhar, quero dizer que não terás muita luz no olho se me olhares, a cabeça procura sempre o chão, o beiço quer o verde sempre, se levanto a cabeça olho como quem não vê, procuro como quem não procura, corro se os outros correm ouvindo a voz do homem he boi he boi, que coisa crua empedrada a voz do homem, que cheiro o cheiro do homem, sendo girafa olho alto, estufo de lagores, sobrepasso, sendo girafa no vão da escada encolho, franzida me agacho, sendo girafa te procuro mais perto, lambedura acontecível isso de hillé ser búfalo zebu girafa, acontecível isso de alguém ser muito ao mesmo tempo nada, de olhar o mundo como quem descobre o novo, o nojo, o coagulado, e olhando assim ainda ter o olho adiáfano, impermissível, opaco

Filosofia na alcova

terça-feira, 14 de abril de 2009

A idade da razão II

era amor. agora era amor. mathieu pensou: "que foi que fiz?". cinco minutos antes aquele amor não existia; havia entre ambos um sentimento raro e precioso, sem nome, que não se exprimia por meio de gestos. e eis que ele fizera um gesto, o único que não devia fazer, aliás não o fizera propositadamente, aquilo viera sozinho. um gesto e aquele amor aparecera diante de mathieu como um objeto importante e já vulgar.

ela estava a seu lado, rígida e silenciosa e entre eles havia o gesto, "tenho horror a que me toquem", o gesto desajeitado e terno, que já comportava a impalpável obstinação das coisas passadas.

"ela está por conta, me despreza", não era o que eu queria dela, pensou com desespero. mas já não conseguia lembrar o que queria antes. era o amor, simplesmente, com seus desejos simples e suas condutas vulgares.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A idade da razão

Contemplara então a carne polida e sedosa, um tecido quase, e seu corpo era apenas uma superfície feita para refletir os jogos estéreis de luz e tremer sob as carícias como a água ondulava ao vento. Agora não era mais a mesma carne.

Gota d'água

Quando o meu bem-querer me vir
Estou certa que há de vir atrás
Há de me seguir por todos
Todos, todos, todos o umbrais

E quando o seu bem-querer mentir
Que não vai haver adeus jamais
Há de responder com juras
Juras, juras, juras imorais

E quando o meu bem-querer sentir
Que o amor é coisa tão fugaz
Há de me abraçar com a garra
A garra, a garra, a garra dos mortais

E quando o seu bem-querer pedir
Pra você ficar um pouco mais
Há que me afagar com a calma
A calma, a calma, a calma dos casais

E quando o meu bem-querer ouvir
O meu coração bater demais
Há de me rasgar com a fúria
A fúria, a fúria, a fúria dos animais

E quando o seu bem-querer dormir
Tome conta que ele sonhe em paz
Como alguém que lhe apagasse a luz
Vedasse a porta e abrisse o gás

domingo, 12 de abril de 2009

Demian

encontrei-me com ele na rua, altas horas da noite, no momento em que dobrava uma esquina, aos tropeções, completamente embriagado. passou ao meu lado e não me viu, os olhos ardentes e solitários perdidos na distância, como obedecendo a uma chamada que lhe chegasse do desconhecido. segui-o até o fim da rua. avançava como se fosse puxado por um fio invisível, num passo fanático, flutuando como um fantasma. entristecido, voltei para casa e para os meus sonhos não concretizados. “é assim que ele renova em si o mundo”, pensei; mas nesse mesmo instante percebi a baixeza e o preconceito moral daquela reprovação. que sabia eu de seus sonhos? em sua embriaguez talvez seguisse um caminho mais certo do que eu no meu temeroso escrúpulo.